segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Um pai ordinário*



Não foram poucas as vezes em que me chamaram de pai especial por ter um filho com Síndrome de Down. Em nenhuma delas eu deixei a pessoa sem resposta.

Se eu sou especial, não é por ter um filho com deficiência, até porque eu tenho outra filha que não tem deficiência e, nem por isso, sou para ela um pai ordinário (sim, o antônimo de especial é ordinário)

Meus filhos podem me achar especial, assim como eu os acho especiais, porque são meus filhos.

Toda essa linguagem caridosa e piegas a respeito de pessoas com deficiência só serve para fazer com que as pessoas os tratem como coitadinhos, que não são.

Pior, ao tratá-los com pena acabam por não reconhecer as suas capacidades, pois junto com a comiseração vem a falta de confiança de que as crianças com deficiência vão conseguir alcançar os mesmos objetivos que as demais crianças.
Eu preferi enfrentar essa questão andando pela contramão. Até hoje não fui multado nem levei pontos na minha habilitação de pai.

Ao invés de tentar "consertar" a deficiência do meu filho, resolvi trabalhar o que ele tinha de bom. Ao invés de rebaixar as minhas expectativas quanto ao que ele poderia alcançar, eu sempre as coloquei nas alturas.

Claro que ele não ultrapassou tudo que eu imaginava, mas nunca atribui os seus eventuais fracassos ao fato dele ter um cromossomo a mais.

O fato dele ser mais velho que a irmã serviu como um grande aprendizado. Ela é educada pela mesma lógica. A do enfoque potencial.

Nossa sociedade está acostumada a tratar todas as pessoas pelo enfoque deficitário, investimos em tentar resolver os pontos fracos dos nossos filhos.

Se a criança vai mal em matemática, logo procura-se uma aula de reforço. Se tem algum problema de comportamento, leva-se aos especialistas para ser medicado.

Apesar de todo o discurso das escolas que falam em investir em habilidades eu nunca conheci um pai que tenha sido chamado na escola porque o filho tirou nota 10 em alguma matéria. 

No fundo, no fundo, o que falta a nós pais e aos educadores é a confiança de que qualquer criança pode aprender, desde que lhe seja oferecida a oportunidade e as condições materiais e pedagógicas.

Essas condições não passam pelo conhecimento técnico da deficiência, pelo contrário, saber que uma criança com Síndrome de Down tem excesso de material genético não faz a menor diferença na tabuada.

Não existe Geografia da Síndrome de Down, nem Português da paralisia cerebral, ou Matemática da tetraplegia.
Assim como, na educação familiar, não existe uma disciplina ou um conjunto de valores diferentes de acordo com cor dos olhos de cada filho.

Enquanto ficarmos presos à "especialidade" dos nossos filhos vamos perder tempo precioso que poderia ser investido na formação deles.

E, sem formação, nenhum filho, com ou sem deficiência, conseguirá se tornar um adulto autônomo.

Descrição da imagem: foto minha ladeado pelos meus filhos.

*Publicado originalmente na revista Pais e Filhos


segunda-feira, 29 de junho de 2015

Não sou capaz de te chamar de incapaz

Nos últimos dezesseis anos eu tenho trabalhado para que meu filho, que tem Síndrome de Down, seja uma pessoa autônoma. Assim como tenho trabalhado para que a minha filha de 14 anos, que não tem Síndrome de Down, também seja uma pessoa autônoma. O trabalho não é exclusivamente meu. É do resto da família, da escola, da igreja e de todos os demais contextos que ele frequenta.

Vai muito além da educação formal (onde ele vai muito bem, obrigado). Se estende a questões de comportamento, de educação financeira, de educação social e aspectos de autonomia da vida diária.

Não acredito que ele seja um santo nem um anjo. Assim como tantos filhos “comuns” de diversos outros pais, entre os quais eu me incluo, tenho certeza que ele vai dar umas mancadas e fazer algumas besteiras de forma consciente. Ou não. Assim é a vida de cada um de nós.

Mesmo assim sou frequentemente questionado se pretendo interditá-lo quando chegar à maioridade. Segundo alguns, um instrumento de proteção.

Interditar significa tirar de uma pessoa o direito de exercer por conta própria os atos da vida civil. Significa impedir que ela faça escolhas e que tome decisões que dizem respeito a sua própria vida.

Significa dizer para o meu filho: você é um incapaz.

E qual seria a minha desculpa para proferir tamanha excrescência? Dizer que o cromossomo que não o impediu de estudar, participar da sociedade e não o impedirá de trabalhar no futuro o tornará incapaz quando chega aos 18 anos?

Que apesar dele viver num país que assinou a Declaração deMontreal e que adotou a Convenção Internacional pelo Direito das Pessoas com Deficiência (com status de lei constitucional), os seus direitos não são respeitados pelos burocratas de plantão?

Que depois de brigar tanto para que todas as pessoas com deficiência sejam consideradas tão humanas como outras quaisquer, ele vai ser privado exatamente dos seus direitos humanos?

O artigo 12 da Convenção é bem claro quando afirma que os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.

Não está se referindo a alguns aspectos da vida. Não está dizendo que aspectos específicos devam ser tratados como exceções, mas que a igualdade de direitos se estende a TODOS aspectos da vida.

Além disso, exige que se criem salvaguardas ao direito de exercer a vida civil. Não salvaguardas que impeçam o exercício desses mesmos direitos.

Mas continuamos a acreditar que proteger as pessoas com deficiência intelectual seja colocá-las numa redoma de vidro blindado onde elas possam ser admiradas pelos passantes mas não tenham a possibilidade de alcançar a vida real.

Continuamos achando que as nossas boas intenções (das quais o inferno está cheio, como diria sabiamente a minha mãe) são mais relevantes que as vontades das próprias pessoas que queremos defender.

Alguns poderão argumentar que a interdição permite que as pessoas com deficiência intelectual continuem a ter acesso aos benefícios assistenciais como o BPC Loas que preconiza que para recebe-lo a pessoa com deficiência seja considerado incapaz para a vida independente.

Uma demonstração inequívoca que um salário mínimo tem mais valor que os direitos humanos da pessoa com deficiência.

Eu vou continuar no meu caminho, o caminho que pretende levar meu filho à ampla, geral e irrestrita garantia dos seus direitos. Que pretende fazer dele e de todas as pessoas com deficiência seres humanos iguais a todos os outros (e não seres de segunda, terceira ou enésima classe).

Tudo indica que terei algumas brigas pela frente. Não serão as primeiras, nem as últimas.

Certamente uma briga eu nunca terei, que seria a minha briga com a minha própria consciência.

Eu nunca serei capaz de chamar meu filho de incapaz.

Descrição de imagem: Fábio e Samuel se olhando


*texto originalmente escrito para a Revista Deficiência Intelectual Nº8

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Não é notícia

Ninguém notou
Ninguém morou na dor que era o seu mal
A dor da gente não sai no jornal
(Chico Buarque – Notícia de jornal)

 

Todos os jornais de hoje se preocuparam em noticiar que a menina atleta, além de ter se tornado uma pessoa com deficiência também assumiu o fato de ser gay.

E eu fiquei me perguntando: e eu com isso? Afinal de contas é uma questão de foro íntimo da moça. Por que esse destaque todo?

Eu que sou um homem sem deficiência, branco, cristão, heterossexual e monogâmico não sou notícia.

Se me tornasse cego, negro, xintoísta, transgênero e poligâmico talvez merecesse uma nota nas colunas de pessoas exóticas dos jornais.

Ou melhor, já fui notícia porque tenho um filho com deficiência que, pasmem, estuda desde sempre numa escola comum.

E tem gente que acredita que o preconceito está diminuindo ou se diluindo. Pura ilusão de quem acredita nas histórias da carochinha.

A ênfase que as pessoas dão para esses estranhos que participam de um mundo diverso só reforça o fato de que o preconceito é que, de fato, é amplo, geral e irrestrito.

Se fossem considerados comuns ou (arghhh) normais, não seriam notícia. E nem seriam alvo dos comentários de grande parte da população.

“- Você viu? Fulano de tal saiu do armário...”

“- Quem diria, um negro foi o primeiro colocado no vestibular da universidade X....”

“- Aquela moça com síndrome de Down se superou e agora até canta no You Tube...”

No dia em que o comportamento e as conquistas corriqueiras das chamadas “minorias” deixarem de ser notícia poderemos, talvez, acreditar que alguma coisa mudou no mundo.

Mas não é o que parece que vai acontecer.


Descrição de imagem: um dos seres estranhos de Greg Petchkovsky, artista surrealista que cria ilustrações, esculturas e animações. O bizarro e grotesco estão presentes em suas obras. Nessa imagem o monstro são estranho está comendo sushi

domingo, 25 de janeiro de 2015

Ah...esses médicos comuns


Quando meu primeiro filho nasceu com síndrome de Down, o primeiro médico com quem tivemos contato era um especialista, um geneticista cujo nome eu tento esquecer até hoje e que, depois de 16 anos, continuo torcendo para que ele se aposente e pare de falar sandices para pais que acabaram de ter filhos com síndrome de Down.

Na UTI da maternidade (ele ficou lá quase um mês por conta da sua cardiopatia congênita) conhecemos o Dr Miguel Borrelli, que foi pediatra dos meus filhos com e sem SD. Um médico competente, atencioso, cheio de bom senso. Ficamos com ele uns bons 10 anos e só deixamos de ir lá por conta do fato de que ele era tão competente que era disputado pelos hospitais e seus horários de consultório diminuíram muito.  Em momentos de urgência fomos atendidos pela sua esposa, também uma pediatra comum e não menos competente que ele.

Quando mudados já conhecíamos pessoalmente o Dr José Moacir, que rapidamente virou só ZéMoa. E de comum ele não tem nada (desculpa te desmentir na frente de todos Zé). A começar do fato que diferentemente de muitos médicos que conheci ele não se coloca num pedestal superior aos demais seres humanos. É um excelente pediatra, é um homeopata sem radicalismos (quando a coisa ficava feia ele não recusava medicar as crianças com alopatia). Mais que isso é um ser humano ímpar. Bom de cozinha, bom de palco e conhecedor de ótimos vinhos. E também casado com uma médica, no caso uma geneticista que não fala sandices.

Passamos por outros médicos comuns. Alguns continuam sendo médicos da turma aqui de casa, inclusive meus. Oftalmologista comum, otorrino comum, dermatologista comum, dentista comum e, no caso do meu filho mais velho, teve até uma cardiologista comum. Ele também teve uma fono comum que gerou resultados comuns, ou seja, ele fala muito bem.

Mas que nunca foram comuns no sentido de banais, corriqueiros ou triviais.

Quando conheci o Dr Zan Mustacchi já não sentia nenhuma necessidade de ir a um médico especial. O que não me impediu de me tornar amigo dele, de trazê-lo para palestras quando promovíamos os papos com os pais, de dividir mesas de debates com ele, até na distante Macapá, graças à Marinalva que nos juntou por lá para comer filhote à beira do Amazonas. Apesar de pequeno no tamanho, um grande sujeito. Mas que só conheceu o Samuel socialmente.

Conheci também outros médicos incomuns no meu caminho. Dentro do grupo de discussão sobre Síndrome de Down alguns com o duplo papel de médicos e de pais. Gil Pena, Célia Kalil, Ana Cláudia. Gente com quem eu adoro trocar idéias e, nãos poucas vezes uns golpes de esgrima. Médicos e amigos amados.

Claro, também conheci gente que não recomendaria a nenhum de vocês por aqui. Faz parte da vida. No caminho vamos encontrar médicos bons e ruins. Professores bons e ruins. Advogados bons e ruins. E até blogueiros bons e ruins, como eu, de acordo com o seu ponto de vista.
 
Não é o fato de serem ou não especialistas que os torna melhores profissionais. Por isso me esforço ao máximo para evitar generalizações. Elas sempre são ofensivas.