sábado, 17 de dezembro de 2011

Xiita convidado: Não é a síndrome


Esse texto foi publicado originalmente no Grupo Síndrome de Down e é uma resposta ao questionamento se uma criança deveria ou não ser promovida da educação infantil para o primeiro ano

*Gil Pena

Fiquei acompanhando essa discussão com certo incômodo. Já de antemão, informo que não sou novo na lista, estou aqui desde as primeiras mensagens. No início, eu participava mais, dava mais pitacos, mas acabei me percebendo repetitivo, sempre falando em confiança, competência, superação, no meio de um tanto de gente que sempre resvala para a dúvida, a deficiencia e a conformação.


Não é o caso particular de uma ou outra criança e sua família, é sempre o tema recorrente, outubrino, da constatação que o ano passou e o menino ficou. É a síndrome, dirão os terapeutas, os professores, pais "experientes".


Eu digo, não é a Síndrome. Vamos arranjar outra desculpa.


Vão lá, me dirão, que são seus circuitos neuronais, as vias receptoras, áreas de associação deficiente, poucos recursos de linguagem, pouca memória de curto prazo, hipotonia, atividade motora fina, etc, tudo isso junto.


Eu sei disso, sei até bastante. Mas temos de tomar uma decisão. Antes mesmo de resolver se o nosso filho vai para o jardim ou o fundamental, ou se o deixamos no maternal. Temos de definir se vamos continuar nos apoiando nas desculpas, na deficiência, ou vamos olhar por outra perspectiva, arranjando meios de driblar a biologia, com cultura.


É uma decisão que não podemos demorar a tomar, pois o tempo passa, as crianças crescem. Inclusão no jardim é trivial, mas o desenvolvimento acadêmico é essencial para que progridam na vida escolar, não dá para ficar perdendo ano, ver os colegas avançando, sem alcançar a leitura e a escrita ou a matemática básica. Depois, se já são jovens, não dá para colocá-los numa classe de alfabetização, é preciso aprender no tempo de aprender. Porque ficar esperando? esperando pelo que?


Se é tempo de aprender, é tempo de ensinar.


Todos nós conhecemos as pessoas com síndrome de Down. Sabemos que podem aprender as coisas, frequentemente elas nos surpreendem, demonstrando alguma habilidade que não esperamos delas.


Bem elas podem aprender, mas é bem difícil se nós não ensinamos.


É preciso ensinar a ler, a escrever, conhecer os números, compreender as quantidades, fazer operações matemáticas, resolver problemas, ir e vir, comportar-se etc.


Parte do ensino é escolar. As crianças ficam na escola para aprender. Muito do aprendizado dos ditos comuns, ocorre de maneira espontânea, e isso se explica em parte por que vivemos num mundo de comuns, a maneira de ensinar parece quase natural.


Temos de sair um pouco da mesmice, desse ritmo "natural" das coisas. Infelizmente muitos profissionais, pais, mães etc, acham que o que é natural é certo, o único jeito de as coisas ocorrerem. Isso está errado, pois o aprendizado em si, não é natural, ao contrário, representa ruptura com o biológico. Ou vocês irão me dizer que na minha biologia há uma afinidade intríseca com o computador: meus dedos teclam as letras no teclado qwerty, pois o teclado qwerty é que está adaptado à minha biologia?


Não. O teclado qwerty é bem pior que o dvorak, onde as letras que mais usamos ficam nos melhores dedos, mas é daqueles entraves culturais que é difícil de mudar. Mas é um entrave cultural, como esse de que as pessoas com síndrome de down são deficientes.


São coisas da cultura. Temos de entender que não são imutáveis. Fazem parte de nossas opções ao estar no mundo.


Podem não ser opções simples, mas são opções. Podemos optar pela confiança, pela competência, pela superação. É uma escolha. Um caminho novo se abre. A construção a cada dia da trilha. Não dá para garantir onde vai chegar. Mas o caminho usual, por onde a maioria vai, sabemos onde vai dar.


É uma opção que pode ser feita agora. Amanhã tem de ser feita de novo. E isso não nos isenta de renovar de novo o propósito depois de amanhã.


A impressão que eu tenho é que toda a angustia de outubro, da rematrícula, acaba resolvida, pela retenção ou mudança de escola ou promoção, e resolvido isso não temos de nos incomodar, até que chegue o próximo outubro, quando nos vão dizer que não está maduro, que está atrasado em relação a turma, e nos perguntam se o levamos para outra escola, se o retemos ou se o promovemos com a turma, mesmo sabendo da sua deficiência.


É isso. A deficiencia ainda vai estar lá. Na opção que tomamos, escolhemos a deficiencia. É o caminho natural, é só deixar as coisas caminharem por si, que chegamos a ela.


Há outra opção. A que desafia a natureza. A que traça um projeto a cada dia, para desviar a deficiência, a limitação. A deficiencia desviada, superada, contornada não é deficiencia, agora são outros desafios: outros projetos, novos aprendizados e superação.


*Gil Pena é médico patologista e pai. Dedica-se a estudos na área da educação, dentro da linha do Projeto Roma.


Descrição de imagem: charge onde um menino diz "Mãe, eu queria aprender a ler e escrever", a mãe, com outro filho no colo e outro na barriga responde: "Lá vem você com suas manias de grandeza"

Também sobre o o tema: Mariazinha tomou pau no maternal