terça-feira, 9 de novembro de 2010

Xiita aniversariante - Maria Teresa Égler Mantoan


O que é inclusão?

É a nossa capacidade de entender e reconhecer o outro e, assim, ter o privilégio de conviver e compartilhar com pessoas diferentes de nós. A educação inclusiva acolhe todas as pessoas, sem exceção. É para o estudante com deficiência física, para os que têm comprometimento mental, para os superdotados, para todas as minorias e para a criança que é discriminada por qualquer outro motivo. Costumo dizer que estar junto é se aglomerar no cinema, no ônibus e até na sala de aula com pessoas que não conhecemos. Já inclusão é estar com, é interagir com o outro.

Que benefícios a inclusão traz a alunos e professores?

A escola tem que ser o reflexo da vida do lado de fora. O grande ganho, para todos, é viver a experiência da diferença. Se os estudantes não passam por isso na infância, mais tarde terão muita dificuldade de vencer os preconceitos. A inclusão possibilita aos que são discriminados pela deficiência, pela classe social ou pela cor que, por direito, ocupem o seu espaço na sociedade. Se isso não ocorrer, essas pessoas serão sempre dependentes e terão uma vida cidadã pela metade. Você não pode ter um lugar no mundo sem considerar o do outro, valorizando o que ele é e o que ele pode ser. Além disso, para nós, professores, o maior ganho está em garantir a todos o direito à educação.

Como está a inclusão no Brasil hoje?

Estamos caminhando devagar. O maior problema é que as redes de ensino e as escolas não cumprem a lei. A nossa Constituição garante desde 1988 o acesso de todos ao Ensino Fundamental, sendo que alunos com necessidades especiais devem receber atendimento especializado preferencialmente na escola , que não substitui o ensino regular. Há outra questão, um movimento de resistência que tenta impedir a inclusão de caminhar: a força corporativa de instituições especializadas, principalmente em deficiência mental. Muita gente continua acreditando que o melhor é excluir, manter as crianças em escolas especiais, que dão ensino adaptado. Mas já avançamos. Hoje todo mundo sabe que elas têm o direito de ir para a escola regular. Estamos num processo de conscientização.

Maria Teresa Égler Mantoan é professora da faculdade de educação da Unicamp.

Descrição da imagem : foto da Profa Mantoan

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Aos professores

“Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra
o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a
ditadura de direita ou de esquerda.
Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação,
contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais.
Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a
miséria na fartura.
Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo.
Sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza.
Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela
some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este saber, se não
luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo descuidado,
corre o risco de se amofinar e já não ser testemunho que deve ser de lutador
pertinaz, que cansa mas não desiste”.
(Paulo Freire)


Ser professor não deve ser fácil. É preciso ter coragem de enfrentar o mundo, lutar contra as pressões dos alunos, dos pais dos diretores; contra a tensão dos três empregos mal remunerados; contra a falta de tempo para se dedicar mais a cada um dos alunos.

É um exercício diário e estafante de formar pessoas, formar gerações. E essa não é uma responsabilidade que seja leve aos ombros de ninguém, saber que vai formar para manter tudo como está ou para transformar o mundo.

É trabalhar sabendo os limites de cada um ( e a falta de limites de tantos outros) e fazer com que todos sejam ultrapassados. É sonhar sonhos possíveis e impossíveis.

É acreditar que o saber não tem proprietário. Que o conhecimento não tem classe social. Que a cultura não tem fronteiras.

E, ao mesmo tempo, saber-se limitado, humano, falível. Capaz de chorar e rir, de acariciar e esbravejar.

Aos professores que realmente acreditam nos seres humanos, os meus parabéns. Aqueles que não acreditam, meus votos de que, em breve, encontrem sua verdadeira vocação.

E que, cada um, à sua maneira, ajude a construir um mundo melhor.

Descrição da imagem: foto minha, aos 7 anos com Dona Dulce, minha professora do 1o. ano primário na festa de entrega do primeiro livro.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Querida excelência

Minha querida excelência

Minha primeira impressão a seu respeito, eu admito, não foi das melhores. Te conheci através de uma entrevista num jornal e, no meu melhor estilo ogro, desanquei com a sua fala (te chamei de secretária das rampas, lembra disso?). Se leu o que eu escrevi na época certamente a sua impressão a meu respeito também não foi lá essas coisas.

Nosso primeiro encontro pessoal começou de forma constrangedora. Eu sabia que você era uma pessoa com deficiência, mas não sabia exatamente qual deficiência. Estendi a mão ao te ver, o que, por motivos óbvios, você teve de recusar. De qualquer forma aquele encontro serviu para que eu começasse a descobrir que você era uma política incomum. Não tinha a arrogância habitual da classe, nem se julgava dona da verdade, pelo contrário, estava disposta a aprender sobre tudo que reconhecia não saber.

Um dia você me convidou para o seu programa de rádio. Ficamos amigos. Recorri a você quando precisei e fui procurado por você quando você precisava. Você me abriu as portas do seu gabinete e eu escrevi textos para as suas publicações sobre deficiência e inclusão.

Candidata à reeleição como vereadora, você não me pediu votos. Mas eu fiz questão de pedir material de campanha. Não devo ter sido um cabo eleitoral de peso, mesmo assim recebi agradecimentos superiores aos meus préstimos. Candidata a deputada federal, de novo fiz minha parte de campanha.

Ao contrário de outros políticos que se dizem defensores dos "portadores", você não caiu na tentação do assistencialismo. Não afagou egos nem bolsos distribuindo migalhas. Por isso que não tive dúvidas sobre apoiar sua candidatura, mesmo sendo um crítico feroz das gestões administrativas do seu partido.

De novo foi eleita. E bem eleita. Provavelmente será a primeira deputada federal tetraplégica da história do país (me corrija se estiver errado). Tenho certeza que o movimento será bem representado.

Não te dou conselhos, mas faço alguns pedidos. No Congresso você vai encontrar de tudo, tenho certeza que a experiência da Câmara Municipal te ensinou a lidar com as raposas. Seja fiel a seu partido (é a regra do jogo), mas nunca deixe que ele oblitere a sua consciência.

Continue lutando pelos direitos das pessoas com deficiência e não pelas esmolas que seus colegas vão propor para garantir seus currais eleitorais. O seu mandato é importante para todos nós, trate-o com carinho e respeito.

Não vou aceitar o seu pedido de voto no seu candidato a presidente. Os fatos demonstram que tudo que ele fez pela causa foi distribuir verba para instituições segregadoras, manter uma política excludente na rede estadual de ensino e prometer hospitais para reabilitar os coitadinhos (sim, para ele deficiência é um problema médico e não social). Enquanto isso, o governo da outra candidata foi responsável pela maior transformação em prol da educação inclusiva que esse país já viu e pela aprovação do mais importante documento em defesa dos direitos das pessoas com deficiência (que muitos dos seus colegas de partido votaram contra). Eu voto pelos fatos não pelas promessas.

Conte com o meu apoio. Continue contando com os meus textos e meu voto. Aquele café que está me devendo, acho que vou tomar lá em Brasília,

Um beijo carinhoso

Fábio Adiron

Descrição da imagem: Mara Gabrilli e Samuel, meu filho, durante as comemorações do Dia Internacional da Síndrome de Down em 2009

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Educação líquida, mas não certa

Esse texto é dedicado a Carlos Eduardo Fantoni Ribeiro, que me trouxe de volta as idéias de Bauman

Zygmunt Bauman é um sociólogo de mais de 80 anos e, apesar da idade avançada é chamado de o profeta da pós modernidade, um dos poucos dos nossos contemporâneos que ainda tem idéias inovadoras.

Uma das suas mais conhecidas idéias é a definição da sociedade atual como sendo a era da modernidade líquida. Segundo a interpretação de Bauman nada mais é permanente, pelo contrário, tudo é permanentemente desmontado e reconstruído e, mesmo a reconstrução já é feita com a perspectiva da transitoriedade.(Sem ter a menor idéia de quem era Bauman, escrevi em 1982 meu manifesto mutantista, texto que reproduzi no meu blog de assuntos aleatórios em agosto de 2007).

Bauman define as modernidades anteriores como sendo sólidas, ou seja, quando a sociedade passava por transições e grandes mudanças, a perspectiva da nova ordem era a de que essa se solidificasse como o novo status quo, que fosse o fim da busca pelas soluções para todos os males do mundo. As modernidades do passado desmontavam as realidades herdadas com a intenção de torná-las melhores.

A modernidade atual é incapaz de manter sua forma. Como todos os líquidos suas moléculas não tem coesão suficiente para se solidificar. As instituições, referências, estilos de vida, crenças e filosofias mudam antes mesmo de terem tempo de se plasmarem.

Tudo é volátil, flexível e, para muitos, o pior é que tudo é imprevisível. As pessoas são levadas a se movimentarem num espaço em que flutuam, onde o bem e o mal são relativos, onde não existem certo e errado, apenas formas diferentes de fazer as coisas. Não existem mais projetos de vida, como propunham os existencialistas, não existe mais uma identidade fixa, vive-se a cada momento sem que haja sentido numa perspectiva de longo prazo.

Isso implica num exercício de filosofia. Quem é o ser? Na modernidade sólida era um cara dividido entre o bem e o mal, na líquida passa a ser alguém que se movimenta entre os mais diversos polos possíveis A explicação mais direta talvez seja a diferença entre o comportamento da sociedade na guerra fria em contraposição ao de hoje nas redes sociais. A maneira de ver o mundo, de tomar posição (era muito mais dicotômica) é diferente de uma sociedade onde tudo é relativo no tempo e no espaço (inclusive a ética), a fluidez desse relativismo é que fez o Bauman falar em liquidez da modernidade

Quando olho para escolas e professores totalmente perdidos com a entrada de alunos com as quais eles não fazem a menor idéia de como lidar, gente que sempre esteve à margem da educação, que sempre foi excluída (e aqui não me refiro apenas às pessoas com deficiência, os excluídos são muitos mais do que imaginamos), eu percebo que, assim como outras modernidades, a escola não está sequer próxima das mudanças que acontecem na sociedade.

Howard Gardner - aquele que mesmo das inteligências múltiplas - costuma dizer que as nossas escolas (não só as brasileiras, mas do mundo todo) continuam a preparar as nossas crianças e jovens para viver no século XIX...

A escola se enraizou nas suas crenças e convicções e, tirando as inovações tecnológicas, nunca conseguiu acompanhar o desenvolvimento da sociedade. Escola que continua tentando impedir o desenvolvimento de novas idéias e soluções, até porque o seu objetivo é o enquadrar seus alunos no status quo. Por princípio, a escola é a principal inimiga de tudo que é moderno, criativo e inovador. (tem dúvidas a respeito? repare nos TCC´s de cursos de pedagogia cujo único objetivo é o de reproduzir o que já foi dito por alguém)

Quando confrontados com a realidade social a escola se confunde toda e adota a postura de rejeitar não só as idéias diferentes como os alunos que coloquem em xeque a solidez das suas apostilas e rigidez das suas avaliações.

Quando um novo professor sai da faculdade e se defronta com a vida real e o estado de liquidez da mesma, constata que não foi preparado para isso. E não foi mesmo. Seu erro é acreditar que a preparação vai se dar nas mesmas instituições que não o prepararam de forma adequada anteriormente.

Só no contato com a realidade líquida é que o professor vai aprender a navegar pelo espaço sem procurar o chão. E vai entender que seu espaço de trabalho não carece de bolas de ferro amarradas nos pés.

Descrição da imagem: foto de Zygmunt Bauman, um senhor idoso, calvo e com os cabelos das têmporas brancos, em posição de oração

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Pesos e medidas

Eu gosto muito de entender os discursos que estão escondidos atrás de palavras jogadas no espaço, desde o meus tempos de faculdade (obrigado Beth Brait e Nina Rosa) aprendi a gostar de Barthes e outros seres estranhos que se preocuparam com esse tema. De certa forma, eu admito, isso se tornou uma prática um tanto quanto obsessiva na minha vida. Para completar o cenário, a minha área de atuação profissional é riquíssima em exemplos ideológicos travestidos de palavras de ordem.

Por uma questão pessoal e familiar (sou pai de uma criança com deficiência) eu fui me engajar na militância pela educação inclusiva. No começo cheguei a acreditar que a questão era a da inclusão de pessoas com deficiência, com o tempo descobri que as exclusões e segregações são muito mais amplas que somente desse grupo.

Nesse meio tenho sido brindado com uma enormidade de falas repletas de máscaras. Uma das mais comuns é a de acreditar que inclusão é sinônimo de pessoa com deficiência. De chamar de inclusão atividades que se restringem a esse público, a ponto de chamar os próprios alunos com deficiência de "incluídos" (nunca me explicaram direito qual terminologia usar com os demais alunos)

Outra máscara hipócrita é a tal da inclusão "responsável". Aqui nesse blog eu mesmo já me declarei um irresponsável por criar meu filho num ambiente que seja igual para todos os seres humanos. Toda vez que ouço ou leio alguém usar esse termo já sei que estou diante de um inimigo da inclusão. Como é feio ser contra a inclusão, eles preferem dizer que são a favor da inclusão de alguns e não de todos (até porque devem acreditar que nem todos os seres humanos sejam muito humanos)

Como o mundo vive em mudanças, novos discursos desse gênero surgem a todo momento. Esse ano o MEC resolveu premiar as experiência educacionais inclusivas bem sucedidas pelo país afora. Uma atitude, a meu ver, bastante louvável, precisamos difundir mais casos de sucesso e mostrar que a inclusão não é uma missão impossível como querem fazer crer seus inimigos.

O que me chamou a atenção foi o fato de que, quando as tentativas de inclusão fracassam os educadores sacam dos seus coletes o discurso das "dificuldades de aprendizagem" dos alunos, mas quando as experiências são bem sucedidas o mérito é das escolas.

Ou seja, se dá errado a culpa é do aluno, se dá certo os louros são dos educadores. Alunos são vilões, professores, super heróis.

De novo, não acho que a questão seja de atribuição de culpas, mas de usar os mesmos pesos e medidas para todos os que participam da educação. Alunos, educadores e pais. Para o bem e para o mal.

Quem sabe na próxima edição do prêmio do MEC os premiados não sejam apenas as escolas, mas todos os envolvidos no sucesso.

Descrição da imagem: desenho do jogo da velha, com uma jogada não permitida (fazendo curva) que força a barra para ganhar o jogo com regras próprias

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Em busca do Santo Graal

Tem horas que a pergunta é tão repetitiva que parece brincadeira de mau gosto. Todo mundo quer uma solução mágica, a resposta de uma única pergunta que resolveria todos os problemas do mundo.

Muitas vezes tenho a impressão que isso funciona como o último pedido dos condenados à morte. A resposta final dos shows de TV onde pode-se ganhar ou perder tudo de uma única vez.

O que todos querem saber qual é o maior empecilho para que a educação seja, de fato, inclusiva. Quando uso essa expressão estou sempre pensando na educação de todos. Educação das pessoas com deficiência não tem nada de inclusiva. Inclusão, ou é para todo mundo, ou não é.

Essa tentativa de simplificação não leva a lugar nenhum. Educação é algo muito mais complexo que a solução de uma charada.

Não adianta dizer que a boa formação de professores seria o suficiente para que a educação fosse boa. Infraestrutura física das escolas ajuda muito, mas também não resolve nada de forma isolada (conheço péssimas escolas em edifícios maravilhosos).

Pedagogia genial não funciona com professores medíocres. Projeto pedagógico exemplar não resolve as questões sociológicas.

Poderia escrever a noite inteira sobre todas as questões que envolvem a construção de um sistema educacional de qualidade e, certamente, não esgotaria o assunto. Currículo? Metodologia? Avaliação?

Mas eu acredito ter descoberto a resposta para a famosa pergunta.

O maior problema da educação é a busca incessante da receita de bolo que não falhe nunca. O bolo que atenda a todos os gostos, sirva para educar todas as crianças de forma homogênea e que, principalmente, não demande nem das famílias, nem dos alunos, nem dos professores, algum trabalho.

Que não obrigue as pessoas a pensar. Daqueles bolos de pacote de supermercado que é só adicionar leite e bater no liquidificador (se bem que, mesmo esses, muitas vezes dão errado também).

Educação se faz com seres humanos. Alunos, famílias e professores. Quando esse negócio chamado "ser humano" entra no processo, o bolo desanda. Cada um deles é diferente de todos os outros. Cada um assa numa temperatura diferente, cada um dá ponto num momento diferente.

O que não significa que a busca pelo santo Graal da educação não vai continuar. Ainda que todos saibam que o cálice mágico nunca será encontrado.

Descrição da imagem : pintura retratando uma mulher ruiva, supostamente Maria Madalena, segurando o cálice denominado de santo Graal

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Mais pior de ruim

Conversa típica de bar, mas também pode ser na cozinha de qualquer casa quando a família se reúne.

Basta alguém contar um "causo" qualquer para outro, logo em seguida, contar algo do mesmo estilo que seja melhor ou maior. Alguém conheceu um homem que pesava 120kg? Isso não é nada, o colega ao lado ou a prima já conheceram um de 150kg.

Quando o causo é alguma coisa ruim ou alguma desgraça, sempre vai ter alguém com a história de uma tragédia maior. Vence sempre o "mais pior de ruim". Faz parte da natureza humana ser o vencedor nas glórias ou nas desgraças.

Na comunidade que cerca as pessoas com deficiência não é diferente. A deficiência do meu filho sempre será mais grave que a do vizinho. O menino com dificuldade de aprendizagem de um professor sempre será muito mais complicado que o do outro.

Nesse caso, a vitória está com quem sofre mais por sua situação. Sua vida é difícil? A minha é muito pior.

Claro que isso embute uma estratégia muito conveniente, seja para os pais, seja para os professores.

Quando a inclusão daquela criança muito problemática funciona, pais e professores podem cantar suas glórias de como superaram uma situação tão adversa quanto as suas.

Quando não funciona, sempre estão protegidos pela comiseração que provocaram em relação a si mesmos. Se foram derrotados é porque as circunstâncias eram complexas demais para qualquer pessoa.

Dificilmente a gente ouve alguém dizer que não acha sua vida difícil. Que o desafio que tem pela frente é superável e, caso não consiga fazer algo, que não existe ninguém para culpar além dele mesmo.

É mais fácil se livrar de qualquer responsabilidade quando se erra e receber os louros quando se acerta.

Enquanto trabalharmos a inclusão de pessoas com deficiência como um fardo insuportável de carregar nunca chegaremos a lugar nenhum.

Continua sendo uma questão de atitude.

Descrição da imagem: cartoon onde uma escova de dentes diz: "às vezes acho que tenho o pior emprego do mundo", ao que um rolode papel higiênico responde: "cê que pensa..."

sábado, 3 de abril de 2010

O Gérson de cada um



"Devemos lutar pela igualdade sempre que a diferença nos inferioriza, mas devemos lutar pela diferença sempre que a igualdade nos descaracteriza"
Boaventura de Souza Santos.

Num dia desses, no supermercado aqui perto de casa, encontrei um rapaz fazendo compras. O adolescente, devia ter uns 15 ou 16 anos, andava pelas gôndolas, olhava alguns produtos e colocava alguns no seu carrinho. Nada muito diferente do que qualquer um faz, exceto o fato que o menino tinha síndrome de Down o que, por motivos mais que óbvios, me chamou a atenção.

Como não é o único jovem que já vi no meu bairro fazendo suas atividades de forma independente (sempre vejo um outro, mais velho, caminhando sozinho na rua) fiquei feliz com sua liberdade. Me enganei. Não demorou muito para que surgisse a mãe com outros produtos e colocasse junto com os outros. De qualquer forma, o rapaz, em momento algum, demonstrou alguma dificuldade em ajudar nas compras.

Cruzei com os dois em outras gôndolas e, quase simultaneamente, em direção à fila do caixa. O supermercado não estava lotado, mas também não tinha caixas livres. A mãe não teve dúvidas, foi direto para o caixa preferencial, ou seja, seu filho era suficientemente capaz para ajudar a fazer as compras mas, para escapar da fila, ele virava um "deficiente".

Nesse momento me vieram à cabeça duas frases. A do professor português Boaventura Santos (que uso como epígrafe) e a da propaganda de uma marca de cigarros protagonizada pelo futebolista Gérson onde ele dizia que era preciso levar vantagem em tudo.

Frequentemente tenho visto cenas e lido relatos exatamente iguais a esses. Pessoas com deficiência ou pais de pessoas com deficiência que, debaixo do discurso de igualdade e de inclusão não perdem nenhuma oportunidade de levar vantagem em tudo.

Pessoas com capacidade econômica atrás de benefícios fiscais, pessoas que querem viajar a turismo caçando descontos beneficentes em passagens aéreas, pessoas sem nenhum problema de mobilidade furando filas.

Agem como se a afirmação de Boaventura fosse: devemos lutar pela igualdade quando ela nos convém e lutar pela diferença quando ela nos convém.

Os mais furiosos vão me responder dizendo que, se a lei permite, porque não aproveitar? Por que não levar vantangem em tudo, certo?

Errado. Cada vez que alguma pessoa usa sua deficiência como arma para obter vantagens ela reforça a percepção deficitária que o resto do mundo tem. Ela proclama para todos que as pessoas com deficiência precisam de tratamento diferenciado por que nunca alcançarão a autonomia. Reforça o discurso da exclusão.

As pessoas com deficiência precisam de respeito e respeito é algo que se conquista, não cai do céu.

Não podem nem se deixar vencer por imposição de condições absurdas (o artigo da Mara Gabrilli sobre esse tema é um bom exemplo disso) mas, também, não podem ser, elas mesmas, a abusadoras.

Claro, tudo é uma questão de bom senso que, infelizmente, é um produto em falta no mercado.

Descrição do vídeo: sentados num sofá, um homem entrevista o jogador Gérson a respeito do cigarro que fuma. Tanto o jogador como o entrevistador estão fumando. Durante a entrevista é mostrado o gol que Gérson marcou contra a Itália na final da copa do mundo de 1970 e, ao final aparece uma imagem com os diferentes maços de cigarro Vila Rica e seus preços.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Uma eleição "deficiente"

A chamada do noticiário para o jornal da noite cita uma matéria onde o chefe político de plantão da localidade inaugurou um novo complexo esportivo dedicado às pessoas com deficiência. A reportagem, para ilustrar a matéria mostra a quadra poliesportiva novinha e cenas de um jogo de basquetebol entre cadeirantes, seguido de um jogo de futebol de salão para pessoas com deficiência visual.

Todos elogiam o lugar e exaltam a figura do doutor fulano que tornou aquele sonho possível. Em sua entrevista, o doutor fulano ressalta a importância da inclusão social (mesmo que isso signifique isolar pessoas com deficiência em um local só para elas) e faz promessas de mais benefícios para os "coitadinhos deficientes". Candidato a deputado na eleição que se aproxima, o doutor Fulano espera ser votado maciçamente por esse público.

Em casa, Marcos, que é pessoa com deficiência visual, ouve a matéria e chama a esposa para descrever o que a TV está mostrando, pois, em nenhum momento a emissora pensou que do outro lado da telinha existem milhões de cegos assistindo ao jornal e não têm acesso às imagens, pois a tal emissora não disponibiliza áudio-descrição dos seus programas.

Em casa, Ana Maria, que é surda e vive sozinha, não tem ninguém para chamar para lhe ajudar a saber a que exatamente as imagens da TV se referem, pois a emissora também não legendou a programação, nem providenciou a oferta da janela de LIBRAS para traduzir o que estava sendo dito na matéria.

Em casa, Dagoberto, que é cadeirante, achou tudo muito bonito, mas lamentou que não vai poder usar o complexo esportivo pois esse, apesar de acessível,está localizado num bairro da cidade que não é servido por transporte público adaptado.

Em casa, Mariana, pessoa com deficiência intelectual, pediu que a mãe a levasse para jogar basquete naquela quadra e teve de ouvir como resposta que a TV informara que aquele local tinha sido cedido para uma entidade de reabilitação, a qual não atende pessoas com a deficiência de Mariana.

Nesse momento, o doutor fulano acabava de perder ou, pelo menos, deixava de ganhar, no mínimo, 4 votos.

O último censo demográfico brasileiro aponta a existência de mais de 24 milhões de pessoas com deficiência no Brasil. Se mantida a proporção (14,5%), o censo que será realizado este ano de 2010 deverá encontrar quase 30 milhões de pessoas com deficiência. O maior grupo é o das pessoas com deficiência visual, parcial ou total, seguido pelo grupo das pessoas com deficiência física ou motora.

Desse total, mais de 70% têm mais de 16 anos e, portanto, são eleitores. Cerca de 20 milhões de votos (na verdade, muito mais, se considerarmos os familiares dessas pessoas) espalhados por todo Brasil. Sonho de consumo de qualquer candidato. Deveria ser o sonho de consumo de todo marketeiro que vai cuidar da propaganda eleitoral desses candidatos.

Os políticos ainda se preocupam em fazer jogo de cena e em entregar pacotes de caridade em forma de benefícios fiscais, gratuidades ou verbas para entidades assistencialistas. Os marketeiros não têm esse poder. Mas teriam o poder de fazer a mensagem publicitária chegar a esses eleitores e isso seria muito mais simples do que parece.

Numa eleição onde os meios de comunicação eletrônicos serão cada vez mais a ferramenta para se chegar aos eleitores, a falta de preocupação com a acessibilidade comunicacional é gritante. Se você entrar no site de qualquer um dos grandes partidos políticos vai encontrar, em todos eles, programas de TV da legenda. Nenhum deles tem qualquer recurso de acessibilidade.

Nem vou entrar no mérito da falta de acessibilidade nas TV´s abertas, essas estão protegidas da obrigatoriedade da oferta de acessibilidade por manobras protelatórias do Ministério das Comunicações.

Verdade se diga, isso não é exclusividade de políticos e de marketeiros. Esta semana mesmo recebi um material de divulgação de um curso sobre inclusão.

Nem o material, nem o site da faculdade que o promovia eram acessíveis. Ao procederem assim, os promotores de tal curso pareciam dizer: "Afinal de contas, para que as pessoas com deficiência precisam de acesso a conteúdos que falem a respeito delas?"

Pior ainda é visitar algumas páginas de políticos que são, eles mesmos, pessoas com deficiência, e descobrir que em seus sites existem conteúdos sem acessibilidade.

Convém lembrar que essa preocupação dos criadores e produtores dos programas de TV, rádio e de páginas da Internet não pode se resumir às questões tecnológicas (se bem que só isso já seria um salto de qualidade enorme), mas também à linguagem e às atitudes devem ser ponto de preocupação desses profissionais.

Muitas pessoas com deficiência, historicamente, tiveram pouco ou nenhum acesso à educação formal e, em decorrência disso, nem sempre vão entender mensagens que usam expressões mais complexas. O que os marketeiros não podem esquecer é que, mesmo sem a mesma bagagem cultural, essas pessoas têm consciência política.

Claro, existe uma grande massa de manobra que se satisfaz com o fato de ganhar um passe livre para o transporte público e barganhar seu voto em troca disso, para depois descobrir que o ônibus é gratuito. E também essas pessoas, junto às demais pessoas com deficiência não conseguirão chegar ao ponto ou embarcar no transporte, pela falta de acessibilidade física.

Claro, existe uma grande massa manobrada por instituições assistencialistas que as tutelam e fazem qualquer negócio para não perder esse poder. Não poucas dessas instituições têm representantes (geralmente, não são as próprias pessoas com deficiência) nas câmaras e no senado, eleitos às custas dessa troca de favores. Tanto uns como outros continuarão presentes na próxima eleição, mas isso também está mudando.

As pessoas estão ficando mais críticas e mais preocupadas em conquistar sua autonomia. Não adianta a propaganda do governante Beltrano falar que está colocando professores auxiliares nas séries iniciais do ensino fundamental se, quando o aluno chega à escola ele descobre que isso só acontece numa escola modelo ou projeto piloto do outro lado da cidade.

Não adianta nada políticos e marketeiros tomarem todas as medidas para que suas campanhas sejam acessíveis se os locais de votação estão repletos de escadas inacessíveis, armadilhas diversas para pessoas com deficiência física, com dificuldade de locomoção, com baixa visão e cegas.

Agora, se você é profissional de marketing, ou produtor de mídia eletrônica e vai trabalhar para algum candidato nas próximas eleições, não deixe de se informar a respeito dos recursos de acessibilidade disponíveis e não se esqueça de incluí-los na sua campanha.

Descubra o que é áudio-descrição, legendagem, interpretação de Libras, existe muita informação a respeito disso na Internet. Convide pessoas com deficiência para participarem dos focus groups sobre a campanha. Entenda a terminologia e a linguagem usadas com essas pessoas.

Isso tudo não garante que todas as pessoas com deficiência votarão no seu candidato mas, pelo menos, evitará que votos sejam perdidos pelo fato de todos esses eleitores em potencial sequer haverem tido conhecimento da sua proposta, pois ela lhes estava inacessível.

Publicado originalmente na Revista Brasileira de Tradução Visual

Descrição da imagem: mão de uma pessoa cega preenchendo uma cédula eleitoral em braille.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Xiita Convidada - O efeito não terapêutico de algumas terapias.

Carla Codeço*

Fico, a cada dia que passa, mais surpresa com os efeitos nada terapêuticos que algumas terapias provocam. Crianças sem espontaneidade, sem a alegria, o senso de humor e a peraltice próprios da infância.

São crianças ensinadas em cada atendimento a se encaixar, a exibir um comportamento normal. É como se nascessem com uma “dívida” em seu desenvolvimento, sendo obrigadas a recuperar esta defasagem evidenciada pela comparação a outros indivíduos de mesma idade. Ao invés de receberem as condições necessárias para aprender são condicionadas através das simulações da vida real dentro de consultórios. A estas crianças é mostrado, desde a mais tenra idade, como devem se comportar para se encaixarem ao padrão aceitável.

As crianças normalizadas podem ser reconhecidas a distância, acabam se parecendo com aqueles andróides dos filmes de ficção científica, que parecem humanos mas têm um que de robô.

Não quero com isso dizer que não devemos propiciar as terapias necessárias para que os potenciais de nossos filhos possam ser melhor desenvolvidos, mas devemos lembrar sempre que eles têm direito a infância, ao seu tempo de ócio. Devem vivenciar a conversa em família, ao invés de apenas terem acesso a conversa simulada na seção de terapia, devem aproveitar seu tempo de ócio em casa para recortar, rabiscar, pintar, livremente, não apenas no ambiente simulado do consultório da TO e assim por diante. Devemos ter cuidado ao estender o ambiente terapêutico para dentro de nossas casas, para que não nos tornemos também profissionais padronizadores dos nossos filhos.

Ao imputarmos aos nossos filhos a obrigação de passar no funil normalizador estamos retirando-lhes a alegria e a espontaneidade infantis. Ao invés de aceitarmos as limitações que a síndrome impõe, estaremos, nós mesmos, impondo várias outras limitações emocionais que a própria síndrome não acarreta. Falo da síndrome de Down.

A partir de um determinado momento, no acompanhamento das terapias do meu filho, percebi que os profissionais e métodos me ofertavam dois caminhos a seguir: ou nos esforçaríamos para passá-lo pela forma normalizadora ou daríamos a ele a liberdade de ser como ele é e, de mãos dadas, ajudaríamos no que fosse preciso para o seu crescimento global. Optei pela última e hoje vejo meu filho feliz, espontâneo, e levado, como toda criança de sua idade que tem o privilégio de viver uma infância saudável.

*Carla Codeço, moderadora dos grupos Sindrome de Down e RJDown e mãe do Rafael e da Joana.

Descrição da imagem : cena do filme Eu, robô onde aparece uma série de robôs humanóides numa linha de produção.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Sem explicação

Uma crença, mesmo que baseada em argumentos falsos, é muito fácil de se criar. Uma pitada de sensacionalismo, outra de escândalo e, para facilitar a difusão da mentira, algo que atribua a culpa de qualquer coisa ao governo (qualquer governo, diga-se de passagem).

Se, além desses ingredientes, a mentira que se cria ajuda as pessoas a conviverem melhor consigo mesmas ela praticamente vira uma verdade inquestionável.

É o que acontece com o mito da relação entre a vacina tríplice viral (MMR) e o autismo. Em 1998 um pseudo estudo científico foi aceito e publicado por uma revista especializada chamada Lancet. Mesmo tendo sido contestado duramente por diversos especialistas a mentira se consolidou de tal forma que alguns pais chegaram mesmo a processar seus governos por terem vacinado e desenvolvido o autismo nos seus filhos.

Doze anos e dezenas de estudos científicos sérios depois, a Lancet apresentação uma retratação oficial, pedindo desculpas por ter publicado o artigo que gerou toda a controvérsia sem fundamentação científica suficiente.

O que não significa que muitos pais tenham mudado de idéia. Eles ainda preferem acreditar que a vacina é a culpada pela condição de seus filhos. Preferem acreditar numa mentira que, de alguma forma, os conforte, do que na verdade, que os devolve ao ponto de partida (o espectro autista ainda é um grande desconhecido, ninguém sabe o que ele é, nem o que provoca seu aparecimento).

A necessidade de encontrar um culpado pela deficiência faz com que muitas pessoas acreditem em qualquer coisa. Isso vale não só para o autismo mas também para a síndrome de Down (que ninguém ainda descobriu o que provoca a trissomia) e para as dezenas de categorias de deficiência intelectual para as quais sequer existe um diagnóstico efetivo.

Assim como a questão da cura, a busca pelo bode expiatório é incessante.

Geralmente são pessoas que querem se desvencilhar da culpa que eles acham que tem. Enquanto não se desvencilham desse peso que se colocaram nas costas (inutilmente, diga-se de passagem, mesmo porque, ainda que fossem tecnicamente culpados isso não deveria mudar a forma de encarar e criar seus filhos) eles deixam de aproveitar mais seus relacionamentos com os filhos.

Quando entenderem que a deficiência não muda as suas condições como pais, nem o fato dessas crianças serem filhos, talvez gastem mais tempo com cada uma delas. Certamente vão descobrir que é uma relação maravilhosa, como com qualquer outro filho.

As crianças que, então, serão alvo de mais atenção e carinho, agradecem.

Descrição da imagem: montagem fotográfica onde uma lâmpada tenta se ligar numa tomada, mas não consegue por os pinos do plug são diferentes dos da tomada

Aviso: os links desse artigo são matéria em Inglês

sexta-feira, 12 de março de 2010

Não existe educação inclusiva

Questionado sobre a existência de algum bom curso de especialização em educação inclusiva fui obrigado a responder ao meu interlocutor que não conhecia nenhum, mesmo porque eu não acreditava na existência de nenhum curso sobre esse assunto.

Diante da surpresa da pessoa à essa minha afirmação expliquei que o mercado está cheio de cursos que se batizaram com esse título, mas nenhum deles é um curso de educação inclusiva, são cursos para a integração de pessoas com deficiência na escola regular. Não estão preocupados em como tornar a escola um local de qualidade para todos mas, apenas e tão somente, querendo preparar pessoas para receber alunos com deficiência.

E se estamos falando de inserção de um grupo específico de pessoas isso não é inclusão.

Também não se trata de inclusão quando esses cursos focam parte do seu currículo nas características fisiológicas das deficiências. Como se para um professor fizesse alguma diferença saber se a cegueira do seu aluno foi provocada por glaucoma, diabetes ou por algum acidente.

E, mesmo se fizesse, nem por isso duas pessoas cegas pelas mesmas causas poderiam ser educadas da mesma forma. As pessoas com deficiência não são pacotes homogêneos de acordo a deficiência que possuem.

O modelo deficitário ressaltado nesses cursos leva as pessoas que o fazem a acreditar que especialistas médicos vão resolver o problema da educação. Isso apenas reforça a idéia de que é o aluno com deficiência é que precisa se preparar para ser aceito na escola. Se fosse inclusão estariam discutindo o que a escola precisa fazer para atender todos os alunos.

Nenhum desses cursos deixa de falar em legislação, pena que sejam apenas os artigos das leis que garantem a educação para as pessoas com deficiência, deveriam estar lendo a LDB inteira e não só um pedaço. Aí sim descobririam que avaliação é algo decidido pela escola e que ninguém é obrigado a dar prova em 50 minutos e notas de 0 a 10.

Um curso que ensine seus alunos a respeito de como educar todas as crianças. Um curso que ensine a explorar o potencial de cada uma. Um curso que fale de escolas que atendam, com qualidade todo mundo. Um curso que ensine as leis e diretrizes da educação do país. Isso sim seria um curso inclusivo.

Para não deixar a pessoa que me questionava na mão, fui ver se descobria algum curso com esse perfil. E descobri. Atende pelo nome de pedagogia.

Educação inclusiva não é uma modalidade de ensino é a própria educação. Não é uma especialidade, se for, deixa de ser inclusiva.

Precisamos de escolas que preparem os professores a serem educadores de todos? Claro que sim. As nossas faculdades de pedagogia hoje preparam seus alunos para serem educadores dos alunos "médios", uma aberração estatística inexistente na vida real. Precisamos de pedagogos que estejam preparados para educar pessoas. Todas as pessoas.

Quando a formação dos professores for inclusiva ninguém vai precisar correr atrás de pseudo-especializações.

O que todos nós precisamos mesmo é de boa educação.

Descrição da imagem: desenho de adultos e crianças formando uma roda. São pessoas de várias etnias, cores, religião e condição física.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Laranja estranha

Mariana era louca por laranjas. Não qualquer laranja, era louca por laranja pera.

Era tão fanática que costumava comprar no atacado. Toda semana ía ao Ceasa e comprava um saco de laranja pera.

Delas fazia suco, saladas de frutas de uma fruta só, as chupava puras. Fazia doces, bolos e tortas.

Nem sempre todas as laranjas vinham perfeitas, algumas chegavam mais secas, outras um pouco amassadas. Mesmo assim Mariana aproveitava todas, de uma forma ou de outra.

Até o dia em que, no meio do seu saco de laranjas pera veio um exemplar de laranja bahia. Para muitos seria apenas mais uma laranja, não para Mariana que ficou perplexa e confusa com um tipo de laranja diferente.

A casca era mais fina, o tamanho maior, o suco com teores diferentes de açúcar e de ácido cítrico.Ela não estava preparada para isso. Não sabia nem por onde começar. Fez uma busca na Internet sobre a tal da laranja estranha. Só encontrou informações sobre os aspectos fenotípicos do citro. Isso não ajudava.

Começou a ligar para amigas. O máximo que descobriu foi que essas laranjas não tinham sementes. Pior foi ter de ouvir da melhor amiga que era uma laranja, e laranjas são laranjas. Que diferença isso ia fazer?

Concluiu que não teria outra alternativa a não ser partir em busca de especialistas. Como iria descascar aquela pele mais fina? Se eram mais doces, como procederia no açúcar da sua famosa compota de laranja? Os gomos maiores não enroscariam no seu processador?

Descobriu várias pessoas que se dedicavam ao estudo e manuseio de laranjas bahia. Uma mulher que era descascologista, com doutorado em bahias. Um agrônomo que tratava de distúrbios de desenvolvimento de citros e até um chef compoteiro que tinha uma instituição dedicada ao desenvolvimento da tal laranja.

Pensou em mandar seu exemplar de laranja bahia para um desses especialistas. Mariana, no entanto, era uma mulher persistente, não poderia admitir que tinha sido derrubada por uma laranja.

Matriculou-se num curso à distância, de capacitação em laranjas. Na primeira aula descobriu que a bahia era só uma das dezenas de espécies de citrus sinensis: Lima, Westin , Rubi, Valencia, Hamlim e Kinkan. O curso não lhe ensinou o que fazer com as diferentes laranjas, mas abriu seus olhos para todo um mundo diverso do que ela conhecia. Também constatou que só com prática de uso de tanta variedade é que ela descobriria como tirar o melhor de cada um dos tipos.

Não perdeu seu amor antigo pela laranja pera, mas descobriu que a vida era muito mais interessante quando as laranjas se misturavam. Era possível fazer sucos usando combinações de frutos mais ácidos com outros mais doces e, até mesmo enriquecer seu bolo de laranja com calda de uma laranja diferente.

Empolgadas partiu para o estudo de tangerinas, depois limões e até mesmo grapefruit.

E, assim como fazia com a laranja pera, Mariana nunca desperdiçou nenhum dos seus cítricos.

Uma verdadeira mestra.

Descrição da imagem: uma laranja bahia ainda presa no galho da laranjeira.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Xiita Convidado - Síndrome de Down não é doença?

José Moacir de Lacerda Jr*

Bem... essa é uma afirmação que, por mais que todos que trabalhamos com inclusão queiramos, não é consensual. Muitos médicos ainda consideram que a condição humana determinada pela Trissomia do cromossomo 21 constitui uma doença. Isso se dá, creio eu, principalmente por ela estar inserida no Código Internacional de Doenças (o famoso CID 10) como fazendo parte do grupo de doenças cromossômicas. Assim sendo, seja aqui no Brasil, nos Estados Unidos, Canadá ou Nova Zelândia, se um relatório pede que se designe o CID de uma criança com Síndrome de Down, esse será Q90. Muitos médicos, principalmente alguns geneticistas, defendem a tese de que se a condição normal do ser humano é ter 23 pares de cromossomos, aqueles que tem a mais ou a menos são vítimas de alguma doença (cabe aqui ressaltar que a Síndrome de Down é uma dentre centenas de alterações cromossômicas, muitas delas incompatíveis com a vida).

Do outro lado dessa tênue linha que compreende em seus extremos a saúde e a doença, encontram-se outros médicos, alguns também geneticistas, pais e profissionais de diversas áreas que defendem que a condição cromossômica não caracteriza uma doença e sim, como já dito, uma condição de vida de cada pessoa, da mesma maneira que uns tem os olhos azuis e outros verdes ou castanhos, muito embora esse seja um exemplo que se situa dentro da "normalidade" genética da espécie humana.

Tenho visto que muitos desta rede se posicionam a favor dessa forma de enxergar a condição humana. Eu, particularmente, também me alinho a essa corrente de entendimento, não apenas em relação à síndrome de Down como a outras cromossomopatias, algumas delas, como já disse, incompatíveis com a vida, o que pode fragilizar bastante, principalmente junto aos meus pares médicos, esse pensamento.

Mas afinal, por que decidi escrever sobre a Síndrome de Down ser ou não doença nesta altura do campeonato?

Tenho trabalhado como pediatra nos últimos 20 anos e, independente da linha terapêutica que adote com uma ou outra criança, tenho sempre o mais extremo cuidado de não prejudicar o pleno desenvolvimento de cada uma delas. Isso não significa, absolutamente, negligenciar a oferta de ações que possam beneficiá-las em cada etapa de suas vidas para que ultrapassem períodos de doenças, ou de dificuldades onde apoios possam ser necessários.

Agora, sempre tive muito cuidado em não aplicar terapêuticas que estejam em fase reconhecimento de eficácia ou segurança (quantas catástrofes a medicina já cometeu por falta desse tipo de cuidado) e também de não gerar angústias ou falsas esperanças aos pacientes que buscam não apenas tratamento, mas muitas vezes apenas orientações.Muito bem, Síndrome de Down não é doença e todos, ou quase todos reconhecem isso.

Agora o que dizer das inúmeras terapêuticas prometidas para tratar os transtornos, principalmente os que determinam (determinam??) deficiência intelectual. Quantas associações terapêuticas tem sido realizadas com o intuito de se "turbinar" a capacidade cognitiva de cada uma das crianças a ela submetidas? Às custas de que outros transtornos notadamente conhecidos de cada um desse medicamentos associados?

Vamos lá, Síndrome de Down não é doença, mas quantas promessas tem sido feitas para se normalizar o defeito genético ou se minimizar suas consequências? Terapêuticas do século XXI, XXII ou XXIII? Nanotecnologia, promessas de se consertar a trissomia dentro de cada célula. Ofertas de terapêuticas gênicas que deverão potencializar os medicamentos utilizados para se minimizar os transtornos intelectuais. Super alimentos que se alocarão nos sítios gênicos para otimizar o aproveitamento de seus nutrientes. A possibilidade de se modificar ou alterar a estrutura do DNA através de alimentos.

Digamos que isso um dia venha a ser possível - me perdoem se ouso dizer-lhes EU NÃO ACREDITO - ainda assim pergunto "as custas do que"? As custas de que outras funções orgânicas? E aqueles que não terão condições financeiras de executarem as ditas super terapêuticas gênicas, serão a nova categoria de excluídos a serem incluídos?Agora, se Síndrome de Down não é doença, o que é que se está tanto tentando tratar?

Perdoem-me mais uma vez se levando uma reflexão absolutamente pessoal, mas não posso deixar de pensar na qualidade de vida de nossas crianças, da destruição de nosso planeta e no desenvolvimento espiritual da humanidade. Reflexões causadas, talvez, por catástrofes que tem acontecido tão próximas umas das outras.

*José Moacir de Lacerda Jr é médico pediatra e homeopata em São Paulo. Não por acaso, médico dos meus filhos.

Descrição da imagem: foto do rosto de uma menina com Síndrome de Down

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Filhos imperfeitos

Conta uma velha história que uma mulher todos os domingos ia a uma igreja diferente para ver como era. Seu objetivo era o de encontrar uma que ela julgasse perfeita. Conheceu centenas de igrejas de diferentes crenças e denominações e sempre achava algum defeito em cada uma delas.

Um dia ela visitou uma igreja com a qual ficou encantada. Na saída da cerimônia religiosa foi conversar com o ministro para dizer que, finalmente, ela encontrara a igreja perfeita e, por isso, gostaria de ser tornar membro da mesma. O ministro olhou para a mulher e respondeu que ela não poderia ser membro de uma igreja perfeita, porque ela não era perfeita.

Essa semana, durante uma reunião de pais na escola dos meus filhos, após algumas discussões sobre o comportamento de algumas crianças, uma mãe pediu a palavra e disse que as crianças deveriam se afastar dos colegas inconvenientes e só andar com aqueles que fossem perfeitos.

Para meu azar, ou sorte dessa mãe, não era eu que estava na reunião e sim minha esposa, que é uma pessoa educada e não costuma pular na jugular como eu faço. Eu poderia até não me sentir ofendido, uma vez que meus filhos não estão enquadrados entre aqueles que têm problemas de comportamento, mas que diabos essa mulher quer dizer com "perfeitos"?

Perfeição (do latim perfectione) caracteriza um ser ideal que reúne todas as qualidades e não tem nenhum defeito. Designa uma circunstância que não possa ser melhorada ainda mais e mais.
Será que alguma criança daquela escola consegue representar essa definição? Será que a filha daquela mulher só reúne qualidades? Será que ela mesma é uma pessoa que não tenha nada para ser melhorado?

O que seria uma criança de comportamento perfeito? (ou um ser humano de comportamento perfeito?). Eu me julgo um sujeito bastante razoável, mas sei que tenho uma coleção de defeitos, inclusive de comportamento, vou prestar bem atenção para ver quem é a menina e ficar o mais distante possível dela, antes que a mãe mande seus acólitos me escorraçar da sua presença.

Na verdade, eu lamento muito pela menina que vai crescer numa família que acredita que existam seres humanos de categorias diferentes, de valor diferente. Provavelmente vai acabar sendo tão arrogante e indelicada quanto a mãe.

A meus filhos recomendo que sempre andem juntos com outras crianças que também sejam imperfeitas, assim aprenderão a se virar no mundo real e, ao mesmo tempo, desenvolver a humildade de saberem que eles mesmos não são perfeitos.

Espero não perder a próxima reunião de pais. Vou sugerir que essa mãe parta em busca da escola perfeita. Só para ter o prazer de saber que, quando encontrar, sua filha será recusada.

Descrição da imagem: gravura Homem de Vitrúvio de Leonardo Da Vinci, que pretende retratar o corpo do homem perfeito

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Inclusão queimada

Dois fatos me chamaram a atenção na semana que passou. O primeiro foi relatado pela Rosangela Gera, contando que a Laurinha (sua filha que é cega) foi excluída de um jogo de queimada durante a aula de educação física na escola. O outro aconteceu aqui em casa, quando perguntei à minha filha o que tinham feito na educação física, e ela, com uma cara de desgosto, respondeu: teve queimada.

A Laurinha não pode participar do jogo de queimada, pois não vê quem detém ou onde está a bola. Minha filha não aguenta mais jogar queimada a cada aula de educação física e faz o possível para ser eliminada do jogo o mais rapidamente possível. O que não deixa de ser uma forma de auto exclusão.

Não sei exatamente o que se aprende nas faculdades de educação física desse país, mas imagino que, ao contrário do que acontece nas escolas, não deve ser somente as regras do jogo de queimada.Até entendo que é uma brincadeira que facilita a vida dos professores, não é necessária uma quadra, basta um terreno plano e uma bola. Também entendo que é um jogo que estimula a rapidez de movimento, a destreza, domínio e cooperação.

Mas será que os professores não percebem que não é um jogo adequado para todo mundo? (e nem estou me referindo somente às crianças com deficiência). Será que não reparam que as crianças se entendiam com o jogo depois de anos fazendo a mesma coisa? Ah sim... reparo que existe criatividade nesse campo. Algumas vezes jogam queimada de 3 bolas. Muito original.

Tirando o enfado das crianças sem deficiência, o que fazer então com aquelas que tem deficiência?

A essa altura do campeonato (para usar um termo esportivo), não é possível que os profesores de educação física nunca tenham ouvido falar em inclusão. Também não deixa de ser verdade que, assim comos muitos outros educadores, ainda estão arraigados a práticas pseudo educativas cheias de preconceitos e focadas nas incapacidades das crianças (modelo deficitário).

Partem do princípio que as pessoas com deficiência são seres subnormais portanto deveriam ser encaminhadas para classes especiais, um tipo de segunda (ou será terceira) divisão da educação. Para que esse modelo caritativo não soe tão feio usam nomes como jogos especiais, paradesporto. Estão apenas dizendo que a criança não cabe no mesmo espaço das demais que podem ser atletas competitivos.

Esquecem que educação física é, antes de mais nada, educação. "As necessidades básicas das pessoas com deficiência são o reconhecimento e o direito de serem atendidas adequadamente. Eles têm os mesmos direitos que o resto das crianças: manipular, conhecer, experimentar, brincar, relacionar-se, sentir, emocionar-se, desfrutar, rir...viver. Não estamos falando de caridade: estamos falando de direitos de pessoas".*

Claro que as atividades esportivas precisam ter algum objetivo além de escapar das boladas do adversário. Da mesma forma que um objetivo em educação física não é aquele que só é alcançado no jogo final de uma competição. Aliás, nem acredito que a educação física se limite a jogos competitivos, que seja apenas vencer quem está do outro lado. Por que é preciso existirem vencedores e perdedores? Será que não existem atividades físicas que desenvolvam um modelo cooperativo? Será que nenhum professor de educação física nunca pensou nisso?

Para isso é preciso olhar o mundo com outros olhos, não basta aplicar fórmulas prontas ou dividir os times para o jogo de queimada. É preciso ver todas as crianças como detentoras de direitos, inclusive o de participar da educação física. É preciso fazer com que a educação seja prazeirosa.

Nesse o momento, não existirão mais exclusões, nem das pessoas com deficiência, nem das que não tem deficiência. E a educação física será, de fato, educação de qualidade para todos.

*Melero, Miguel Lopez. A Educação Física e as Pessoas com Deficiência: Outro Modo de Culturização Para a Melhora da Qualidade de Vida

Descrição da imagem: desenho de crianças jogando queimada, um jogo onde uns tentam acertar uma bola nos demais.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Síndrome de apud

Alguns autores não costumam ser fáceis de ler. Outros, apesar de não serem tão difíceis, tem o inconveniente dos seus livros, há muito, terem desaparecido das livrarias. Nosso modelo de distribuição comercial editorial não lhes dá vida muito longa nas prateleiras.

O que não quer dizer que todos os autores importantes estejam esgotados ou fora de catálogo, uma busca simples nos sites das nossas livrarias me direcionou para mais de 10 títulos originais de Paulo Freire, outros tantos de Vigotski (em várias línguas, inclusive português). Poderia ter procurado Maturana, Piaget, Morin e os resultados não seriam muito diferentes.

Isso não significa que as pessoas que dizem seguir as teorias de qualquer um deles efetivamente os tenham lido. O que chega a ser assustador.

Não poucas vezes me defrontei com pessoas, que se arvoram em doutores da sabedoria inclusiva, cujo único conhecimento de Paulo Freire são algumas citações famosas que circulam na Internet em arquivos piegas de powerpoint. Em outros casos, vigotskianos que jamais chegaram perto dos Fundamentos da Defectologia, mas conhecem o autor através da citação da citação da citação. Freud continua sendo o responsável por explicar tudo, desde que não seja necessário ler Totem e Tabu, nem a Interpretação dos sonhos.

Eu costumo me referir a essa prática como síndrome de apud, uma palavra latina usada quando se faz uma citação de segunda mão, isto é, a citação de uma citação. Em outras palavras, ela se refere à transcrição ou paráfrase de uma frase ou um trecho de que só tomamos conhecimento no livro de outro autor. Ou seja, é uma declaração de que o original não foi lido por quem o menciona.

Você lembra da brincadeira do telefone sem fio? Que conta um conto aumenta (ou diminui) muitos contos? É o que está acontecendo entre os nossos especialistas. Na educação, que eu acompanho mais de perto, a síndrome de apud é onipresente, e o que chega na ponta, onde se educam as crianças, é a versão da leitura da interpretação da análise crítica requentada por apostilas.

Os grandes nomes da educação são tão relativizados que chegam a gerar monstros como o "método piagetiano", coisa que o suiço jamais criou. Isso sem contar as escolas que alfabetizam pelo método "Emília Ferreiro" (tenho certeza que ela nunca ganhou um centavo de direito pseudo-autoral por isso).

As causas da síndrome são bastante claras. É mais cômodo ler um livro resumindo o pensamento de um autor do que entender o que ele realmente queria dizer. Ler e pensar são atividades cansativas que podem ser substituídas por manuais com tópicos simplificados. É mais fácil transformar um posicionamento filófico em receita de bolo do que entender um pensador e cotejar seus ensinamentos com a realidade.

As editoras, que não são bobas, há tempo perceberam que o mercado da teoria digerida dá muito dinheiro. Se existem 10 livros publicados de Paulo Freire, devem existir 50 transformando Paulo Freire em leitura leve. Costumam ter títulos como "Fulano de tal: uma iniciação". "Entendendo Beltrana", ou os clássicos "7 passos para entender Sicrano".

Eu não sei se a síndrome tem solução. Nossa formação de profissionais é cada vez mais utilitária e menos reflexiva. Provavelmente as próximas gerações só saberão que Freud, Vigotski ou Morin escreveram livros pois esse serão mencionados em suas biografias na wikipedia. E todo conhecimento a respeito deles se limitará a antologias de frases famosas.

Descrição da imagem: foto de Paulo Freire.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Os meus desiguais

Mais uma vez, durante essa semana, fui confrontado com a tese de que as pessoas precisam conviver com os seus iguais para desenvolver a sua identidade.

Eu não entendo nada de psicologia e de psicanálise. Também não entendo porque esse tema de identificação com os iguais só surge quando se refere a pessoas com deficiência ou com aquelas que são consideradas desviantes da normalidade.

Nunca ouço que os gordos barbados como eu precisam formar um grupo de encontros para que possam exercitar suas identidades. Nem que mulheres morenas de olhos verdes deveriam criar uma associação para garantir os seus direitos.
Se eu preciso ver quem eu sou um espelho não é suficiente? Por que preciso me enxergar em outro? Além do que, nem mesmo entre gêmeos, dito idênticos, existe essa "igualdade" preconizada pelos defensores de grupetes segregados.

E aí eu me pergunto: que, afinal de contas é o meu desigual?

A Marta que é mulher enquanto eu sou homem?

O MAQ ou o Paulo que não enxergam?

A Anahi que precisa de um implante para escutar? Ou será a Flávia que não anda?

Será que meu desigual é o Nathan que é negro? Será o Richard que é homossexual? O filho autista da Valéria?

Na verdade são todos e nenhum deles. Todos são meus iguais enquanto seres humanos detentores de direitos e deveres. Todos são meus desiguais enquanto seres humanos únicos e insubstituíveis.

Mesmo o ser humano mais parecido comigo ainda será meu desigual e é nesse ponto que as pessoas não conseguem compreender o que é, efetivamente, o conceito de diversidade.

Meu diferente é qualquer um e não um grupo específico vítima da exclusão. Meu diferente é você que está me lendo.

Diversidade não é defender os interesses de coletivos de gênero, de etnia, de condição física ou de orientação sexual. Ou entendemos que todos são diversos, ou admitimos que todos são iguais, não existe meio termo (ainda que muita gente acredite que "nós somos iguais e eles diferentes")

Ainda assim, muita gente vai continuar procurando criar guetos de seres supostamente iguais. Vai colocar os filhos em encontros de pessoas com as mesmas deficiências que eles tem, educando-os para acreditarem que são seres de um planeta diferente, que só podem conviver com seus espelhos fenotípicos.

Essa é a identidade que eles vão construir, a identidade que a sociedade quer que eles tenham, a identidade que os rotula e os exclui da convivência com todos os demais seres humanos.

Descrição da imagem: uma caixa de botões de roupa de diversas formas e cores

domingo, 31 de janeiro de 2010

Os mesmos culpados

Não é a primeira vez que escrevo a respeito de culpas. Segundo a Wikipedia, culpa se refere à responsabilidade dada à pessoa por um ato que provocou prejuízo material, moral ou espiritual a si mesma ou a outrem.

Seja pela nossa formação religiosa ou social, nós fomos criados para identificar culpados, não para resolver questões complicadas. Achar soluções para dificuldades implica em um esforço racional e operacional que ninguém quer ter. Por que se dar ao trabalho de desenvolver e aplicar soluções se é mais fácil atribuir a culpa dos nossos fracassos a outrem?

Essa maneira de encarar a vida está espalhada em todos os âmbitos onde existam seres humanos. Se o orçamento familiar não fecha, a culpa é do marido, da mulher ou do filho adolescente que estoura a conta telefônica. Se a empresa dá prejuízo a culpa é dos clientes que não compram. Se economia não funciona a culpa é do governo que não ajuda.

Na escola isso não é diferente. Se o aluno não aprende, a culpa é dele. Se o aluno for uma pessoa com deficiência ele passa a ser duplamente culpado: por ter a deficiência e por não se esforçar o suficiente para superar as suas limitações.

É bastante comum ouvirmos o discurso que o aluno não tem isso, que ele não consegue aquilo. Jamais ouvi uma escola dizer que ela mesma não teve competência para ensinar alguma coisa a um aluno (com ou sem deficiência), o que ouvimos é que o aluno deve procurar outra escola porque ele (de novo Ele) não se adaptou aos padrões da escola.

Nunca ouvi uma escola admitir que ela tenha dificuldades de ensinagem (não procure no dicionário, essa palavra não existe).

Se o aluno tem alguma deficiência a solução é despachá-lo para alguma entidade filantrópica onde ele possa ser devidamente isolado do mundo e não incomodar ninguém Se não tem deficiência, recomenda-se aos pais que procurem uma escola que seja menos exigente.

Mas também não adiantaria nada as escolas assumirem a culpa. Isso também seria uma solução cômoda para os alunos e pais. E não resolveria os casos frequentes de exclusão.

O que precisamos é parar de apontar os indicadores e partirmos em busca de soluções. A escola efetivamente assumir sua função educacional e entender que não existe ninguém que não possa aprender. Os pais e alunos se envolverem com os projetos pedagógicos. É preciso caminhar juntos, senão o único prejudicado continuará sendo aquele que deveria ser o objeto da educação: o aluno.

No momento em que conseguirmos nos desvencilhar dos complexos de culpa e das práticas de empurrar responsabilidades para os outros é que escolas e alunos vão ensinar e aprender juntos.
E, quem sabe, desenvolvendo esse modelo de busca de soluções e não de culpados, a sociedade, como um todo, se torne um lugar mais saudável para se viver.

Descrição da imagem: desenho de uma grande mão apontando o dedo para um boneco humano que cobre a cabeça envergonhado.